domingo, 3 de maio de 2015

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

Semana passada se celebrou o Dia do Goleiro. Um pouco incomodado com a polarização entre os nomes de Júlio César e Bruno, que foram dois goleiros espetaculares, vitoriosos e que fizeram história no Flamengo, mas que estão longe de terem sido os dois ÚNICOS grandes goleiros do clube, aí vai um breve texto, em historietas, em que tento passar um pouco do perfil do goleiro que VI jogar e que mais me agradou. Talvez não tenha sido o mais espetacular tecnicamente (se bem que tinha amplo, completo e perfeito domínio dos fundamentos), mas era um jogador que sabia tudo e mais um pouco dos “outros” aspectos do futebol. Um goleiro cretino, cínico, marrento, capaz de desestabilizar o mais sóbrio dos adversários, estivesse ele dentro ou fora do clube. Boa leitura.

1980
A temporada se inicia com uma definição importante. Cantarele é o goleiro titular, por opção de Coutinho. Raul, que vem de lesão, é o reserva e terá que disputar posição. Aliás, Coutinho anda acariciando a ideia de ceder às várias sondagens (Grêmio e Internacional andam interessados) feitas ao veterano goleiro e liberá-lo para negociação. Raul anda se lesionando com certa frequência e o treinador entende ser o momento de enfim dar a Cantarele uma sequência de jogos. Perguntado sobre sua condição de reserva, Raul, manhoso, declara: “talvez tenha mesmo chegado a hora dele, é um rapaz de 25 anos, eu já tenho meus 34 nas costas e tenho pouco tempo de bola, ele tem toda uma carreira pela frente.”

Mas Cantarele sente uma lesão no joelho e não viajará com o time para os amistosos da pré-temporada. Na primeira partida, contra o São Paulo no Morumbi, Raul faz pelo menos quatro defesas monstruosas, garante o 0-0 e sai ovacionado de campo. Poucas semanas depois, o Flamengo voltará ao Morumbi, agora para enfrentar o Santos, pelo Campeonato Brasileiro. Raul volta a atuar no gol do Flamengo. Mas agora é o titular, posição que conquista de forma definitiva.


1981
Dino Sani, irritado com a aversão de Raul aos treinamentos, resolve barrar o veterano goleiro. Anuncia que Cantarele será seu titular para o Estadual e a Libertadores. Inabalável, Raul dá de ombros: “opção dele”. Cantarele começa bem, mas logo na estreia da Libertadores falha nos dois gols do Atlético-MG, ambos  marcados por Éder, de falta. Mesmo assim, é mantido por Dino Sani. Mas o treinador acaba caindo e dando lugar ao seu auxiliar, Carpegiani, que em sua primeira partida, contra o Olimpia no Maracanã, resolve manter Cantarele no gol. Mas o goleiro novamente falha, sai de campo vaiado e, para os jogos no Paraguai, Carpegiani resolve tornar a efetivar Raul, buscando regularidade e experiência.

1981
Falta na entrada da área. Após 89 minutos de um jogo extremamente tenso, corrido e ríspido, beirando a violência, um tiro livre poderá definir a partida. Mais do que isso, poderá selar a sorte do Flamengo na competição. A bola está posicionada no lado esquerdo do ataque paraguaio, próxima à risca da grande área. Praticamente todos os jogadores estão na área do Flamengo. O cobrador ajeita com carinho a bola sobre o gramado duro e irregular do Defensores del Chaco. A falta é extremamente perigosa e o gol parece palpável. Gol que, a se confirmar, tirará o rubro-negro da competição. Trila o apito. A bola sai exatamente como desejado, zunindo rascante e rasante a poucos centímetros do gramado. Uma nuvem de jogadores se acotovela em sua trajetória, que a qualquer momento poderá ser desviada por um pé, uma mão, um joelho, um morrinho. Nada mais se vê além do amontoado de gente e poeira que obscurece a visão e acentua a angústia e aperta os corações de milhões de torcedores, olhos espremidos nos televisores que reproduzem a imagem escura que emana do estádio. Súbito, a fumaça se dissipa. Está consumado. A bola, após queimar a grama, rodopiar e viajar qual projétil, encerra sua viagem. Está guardada, agasalhada, abrigada segura nas mãos do veterano goleiro. Raul ergue o corpo e, sem mudar a expressão, olha para os lados. Um desavisado pensa, “vai pedir um café.”

1982
Termina a partida no Estádio Olímpico. A sensação geral é de que o Flamengo, que não fez boa partida, escapou de perder o título brasileiro. O Grêmio, que perdeu várias chances, inclusive estampando a trave rubro-negra num balaço de Baltasar, exala confiança para a partida seguinte. Uma das grandes figuras flamengas em campo, o goleiro Raul, é bastante assediado pela imprensa. E, ainda no gramado, declara em entrevista, a voz quase sussurrada: “Acredito que não fomos bem e realmente sofremos uma grande pressão. Acho que a pressão será ainda maior no próximo jogo. Será uma partida mais intensa, mais pegada, mais jogada”. E emenda, com extrema tranquilidade, esboçando um sorriso que beira o cínico: “e por isso mais interessante”. Aparvalhado, o repórter se retira. Parece ter entrevistado alguém que saiu de um jantar, não de um jogador que acabou de disputar uma final de campeonato.
E o tempo mostrará que Raul, afinal, tinha razão. O jogo-extra se mostra bem mais dramático e emocionante. O goleiro é ainda mais exigido. E, além de não cometer nenhuma falha a olho nu, ainda faz algumas defesas antológicas, segurando o 1-0 que dá o bicampeonato brasileiro ao Flamengo.

1983
O Couto Pereira apinhado com o maior público de sua história incandesce. O que parecia inimaginável está acontecendo. O imbatível Flamengo está a um gol de ser eliminado pelo brioso mas limitado Atlético-PR, justo na partida que está definindo um dos finalistas do Brasileiro. O rubro-negro do Rio parece sentir os dois gols sofridos em um curtíssimo espaço de tempo e recua, tenta tocar a bola para respirar. Os paranaenses sentem o momento e tentam pressionar, encurralar. Súbito, uma bola é esticada na direita. O ponta-direita Capitão fecha em diagonal, recebe e avança, livre. O estádio, em chamas, empertiga-se, pronto a explodir. Experiente, campeão brasileiro anos antes com o Guarani, Capitão sabe o que tem de fazer. Daquela posição, é mandar o tiro forte, seco, alto e no canto do goleiro. E com força. E a bola sai exatamente dessa forma. Não há o que fazer. O grito de gol começa a sair em berros mais afoitos. No entanto, o goleiro, que no último momento se encolhera qual presa à espera do golpe de morte, ergue-se num bote fulminante, instantâneo, milimétrico, provavelmente não humano. E intercepta o tiro de forma suave o suficiente para mandar ao inferno todos os sonhos, as ilusões e os devaneios de quem um dia ousou desafiar o campeão do mundo. Raul se levanta, limpa o calção, parece querer ler um jornal. Não esboça a mais remota expressão em sua face neutra. Ao seu redor, o silêncio é penetrante.

1983
O Flamengo enfim anuncia a contratação de Ubaldo Fillol, um dos melhores goleiros do mundo em atividade (para muitos, o melhor). Raul, que já confirmara sua aposentadoria no final do ano, é procurado por um jornalista. Parece feliz, numa das poucas vezes que demonstra emoção nas coisas de futebol. Sorridente, atende ao repórter: “Estou contente, sim. O Flamengo ter trazido um goleiro desse nível para me substituir é a melhor demonstração de reconhecimento ao que fiz na carreira. Sinal que não fui qualquer um.”


Boa semana a todos.