domingo, 15 de março de 2015

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos,

Ultimamente tenho me envolvido em algumas discussões, cujo principal mote trafega ao redor de uma questão aparentemente simples: afinal, este time do Flamengo tem condições de colher bons resultados ao longo da temporada?

A questão, posto que simples, é traiçoeira, pois o futebol costuma demonstrar que as circunstâncias que erigem e destroem equipes oscilam ao humor das brisas.

Isto posto, deixo aqui uma história que trata de um dos mais colossais erros de avaliação que presenciei nesses mais de trinta anos acompanhando futebol. Boa leitura.

1994.

Falta dinheiro, mas sobra entusiasmo.

Após a perda o Estadual por detalhes, paira na Gávea a certeza de que há uma espinha dorsal de qualidade e em condições de ser trabalhada para o Campeonato Brasileiro. Vários garotos foram promovidos ao longo da competição e funcionaram, a torcida viu florescer de maneira fulminante o talento do jovem Sávio, e mesmo entre os jogadores caros contratados às pressas houve alguns destaques, casos de  Boiadeiro e Charles.

Mas, sem recursos, o Flamengo somente terá condições de manter o goleador baiano para o restante da temporada. Os rodados Valdeir e Carlos Alberto Dias são devolvidos aos seus clubes, e Boiadeiro, apesar do interesse rubro-negro, migra para a maior estabilidade e organização do futebol paulista (vai jogar no Corinthians). O treinador Júnior, que manteve uma relação de constantes atritos com a diretoria, é dispensado, e em seu lugar chega o mestre Carlinhos, profissional habituado a lidar com elencos jovens.

Carlinhos terá a missão de avaliar o elenco na série de amistosos que o Flamengo fará no exterior, enfrentando equipes europeias e asiáticas. As referências do elenco são o goleiro Gilmar (que não viajará, pois está renovando o contrato), o zagueiro Gélson, o lateral/volante Charles Guerreiro, os volantes Fabinho e Marquinhos, o atacante Nélio e especialmente o zagueiro Rogério, que enfim vive seu melhor momento no rubro-negro, assumindo sua posição de líder natural de um elenco onde pulsam os garotos Adriano (goleiro campeão da Copa SP de 1990 e apontado como o herdeiro de Gilmar), Henrique (lateral-direito arisco e impetuoso), Índio (zagueiro tosco e vigoroso), Hugo (meia que cadencia e distribui o jogo), Rodrigo Mendes (meia-atacante muito veloz e habilidoso) e Magno (atacante rápido e trombador). E há Sávio, cujo talento já assombra inclusive os mais céticos.

A missão do Violino será analisar esses nomes e apontar eventuais necessidades de contratação.

A primeira partida da excursão é a mais emocionante, não pelo que acontece em campo, mas pelas circunstâncias. Zico está se despedindo do Kashima Antlers e convida seu time do coração para a derradeira partida. O Flamengo (que curiosamente atua nesse jogo com um patrocínio pontual dos Postos Ipiranga) vence por 2-1, com dois gols e show de Sávio, diante de 50 mil torcedores que lotam o Estádio Nacional de Tóquio.

A seguir, os comandados de Carlinhos participam do Torneio Internacional da Malásia, criado em complemento às festividades de inauguração do belo e suntuoso Estádio Shah Alam de Kuala Lumpur. O torneio reúne seis equipes, distribuídas em dois grupos. O rubro-negro estreia contra a seleção olímpica da Austrália (os Olyroos). Jogo tenso, pesado, truncado, e um insosso 0-0. Ao final da partida, Carlinhos se diz impressionado com o sistema defensivo dos australianos, considerado por ele “um dos mais perfeitos jamais visto”.

O empate coloca o Flamengo na obrigação de derrotar o Leeds United, que vencera os australianos (com sistema defensivo e tudo) por 2-1. Mas não será fácil. O Leeds é uma das principais equipes inglesas, costuma figurar nas primeiras colocações da Premiership (é o atual quinto colocado, e foi o campeão inglês dois anos antes) e jogará “em casa”, pois os malaios são fervorosos aficcionados do futebol da terra da rainha. No entanto, o Flamengo surpreende, se supera e derrota os ingleses por 2-1. Rodrigo Mendes abre o marcador, o venenoso goleador Whelan empata e, a 15 minutos do final, o garoto Magno marca o gol da vitória flamenga.

Com o resultado, o Flamengo termina o seu grupo na primeira posição e se classifica para a Final. Vai enfrentar o Bayern Munique, campeão alemão.

O Bayern vem a campo com nove de seus titulares. Está lá meia seleção alemã (Hamann, Scholl, Nerlinger, Zickler, Babbel, Ziege) e o artilheiro francês Jean-Pierre Papin. Os desfalques são o controvertido goleiro Oliver Kahn e o zagueiro Helmer.

O Flamengo conta com o retorno de Charles Baiano (que havia sido expulso contra os australianos) e manda sua força máxima a campo. O estádio vê os alemães abrirem o marcador, através de Papin, cobrando um pênalti cometido por Adriano, que é expulso. Ainda na primeira etapa, Rogério, em bela cobrança de falta, empata a partida, que se torna feroz e encarniçada. No segundo tempo, Marquinhos arrisca, a bola desvia na zaga e engana Gospodarek. Com isso, o Flamengo se tranca atrás e passa a jogar em mortais contragolpes. Numa dessas estocadas, Sávio, em velocidade alucinante, rebenta a bola nas redes e decreta o placar final: Flamengo 3-1 Bayern Munique. Flamengo campeão do Torneio da Malásia, sob entusiásticos aplausos de um público encantado com a “magia do futebol brasileiro”.

Antes de encerrar a excursão, o Flamengo ainda enfrenta o Celtic-ESC em dois amistosos (em Dublin e no mitológico Hampden Park, em Glasgow). Empata ambos (1-1, gol de Sávio, e 2-2, gols de Sávio e Fábio Baiano). O time retorna ao Rio de Janeiro invicto e com um bonito troféu na bagagem.

Com o desempenho flamengo na excursão, cria-se uma atmosfera de entusiasmo e alegria, que ganha tintas de euforia. A avaliação geral é a de que uma equipe capaz de enfrentar e vencer algumas das principais forças do planeta está plenamente pronta e preparada para disputar de forma competitiva o Campeonato Brasileiro e a Supercopa. Aliviada, a diretoria anuncia que não fará contratações de peso para o restante da temporada. Não é necessário.

Mas Carlinhos, ainda antes do início do Brasileiro, recebe duas notícias devastadoras: o zagueiro Rogério, pilar do sistema defensivo da equipe, enfim consegue sua sonhada transferência. Vai defender o Cruzeiro. A outra “novidade” é a confirmação de que Charles Baiano, que saíra contundido da decisão contra o Bayern, tem uma séria lesão no tornozelo e dificilmente voltará a atuar em 1994. O Flamengo perde dois jogadores experientes e importantes, duas baixas que serão pesadamente sentidas.

E assim, com os zagueiros Marçal (Madureira) e Paulo Paiva (Bangu) contratados para repor a saída de Rogério, e o atacante Rogers promovido para substituir Charles, o Flamengo inicia a disputa do Campeonato Brasileiro. Na Primeira Fase colhe resultados razoáveis, catando pontos aqui e ali e virtualmente escapando da perigosa Repescagem ao derrotar o Bragantino em pleno Marcelo Stefani, 1-0 já na penúltima rodada. Os grandes momentos são os contundentes 3-0 no Sport, com atuação de gala de Sávio (autor dos três gols) e, principalmente, os inesquecíveis 5-2 no Corinthians de Boiadeiro, em que o Flamengo desenvolveu, na segunda etapa, uma das mais espetaculares partidas de sua história. No entanto, a euforia por essa goleada cega torcedores, cronistas, dirigentes e mesmo membros da comissão técnica. O jovem Magno (autor de três gols) ganha a alcunha de Romagno dos jornais. A imprensa fala em “jovens herois prontos a repetir uma saga”. O próprio Carlinhos, sempre comedido, passa a falar abertamente em “brigar pelo hexa”.

A expectativa devasta o preparo psicológico de uma equipe aguerrida e com alguns talentos, mas limitada. O resultado é um desastre, um cataclisma, uma prévia do padecimento em anos seguintes. O Flamengo chega a passar oito jogos sem vencer, sofre várias goleadas (uma delas para um catado de reservas e juniores do São Paulo), torna-se piada nacional e vários jogadores acabam carbonizados, como o próprio Magno, um dos principais alvos das chacotas e pilhérias. Felizmente, a Segunda Fase não interfere na briga pelo rebaixamento. O Flamengo termina o campeonato como um dos piores times da fase, o 14º entre dezesseis equipes.

Enquanto o time naufraga e é praticamente largado ao abandono por uma diretoria mais preocupada em tentar a reeleição no final do ano (em que fracassa), um movimento silencioso, mas intenso, quase febril, começa a ganhar corpo. Uma sequência de tratativas, acertos, conversas, sondagens. Uma marola que se iniciou quase descompromissada ainda durante a Copa do Mundo vai se tonificando. O que parecia absurdo, delirante, objeto dos devaneios de alienados, talvez não seja tão surreal.


E os telefonemas entre o Rio e Barcelona seguem a cada dia mais intensos.