A solidão
da derrota.
Há algo
de intimista na forma como se saboreia o amargo acepipe do revés. O
insucesso sorvido em silêncio, em retiro, a brisa que desalinha os
ralos fios de um cabelo a cada dia mais encanecido. O ciciar macio de
alguns pássaros que ajuda a entregar uma paz acima de tudo
melancólica.
Carlinhos
apostou tudo. E perdeu.
Mas,
enquanto vai bebericando os ásperos goles de uma cerveja já
beirando a tepidez, o treinador segue convicto de ter optado pela
alternativa correta. Sabia que a lenta zaga da equipe não era mais
páreo para ataques velozes, e essa realidade já lhe vinha sendo
sistematicamente exposta desde as duras derrotas para os uruguaios do
Nacional. Tinha a convicção de que Leandro, o gênio, craque
Leandro, a despeito de seu enorme talento e incomparável técnica,
não mais reunia condições de, sem uma intervenção cirúrgica,
jogar futebol em alto nível. Mas a barração de um titular tido
como absoluto e um dos líderes do elenco, em um ambiente coberto de
proteções e melindres, tinha que ser operada de forma cautelosa.
Houve a falha decisiva e comprometedora no primeiro jogo da final. O
título virtualmente perdido. A necessidade de ações mais
agressivas. E Carlinhos viu sua oportunidade. Agiu. Mas o fez no
apagar das luzes, na preleção de vestiário. Não havia outra
forma. Se fizesse antes o mundo lhe iria à cabeça, a polêmica nos
jornais destruiria o já frágil ambiente do elenco. E Leandro foi
barrado. E entrou Aldair. Os jogadores mais experientes chiaram, reclamaram, xingaram. Porém o time melhorou dramaticamente.
Mas
perdeu. Perdeu injustamente, mas perdeu. Carlinhos perdeu o jogo. O
título. E o grupo.
A
cerveja, já quente, é expelida do copo e ganha a relva. O gole,
agora agradavelmente gelado, relaxa mas não tira de Carlinhos a
certeza de que seu trabalho no Flamengo acabou. Jogador de tantos
anos, sabe como a coisa funciona no mundo da bola. Sem o apoio dos
líderes do elenco (apenas Zico o defende), destroçado pela imprensa
(que o acusa de despreparo) e alvo dos dirigentes (que anseiam por
uma cabeça), o treinador sabe que sua saída é questão de horas.
Provavelmente já tenha inclusive sido decidida.
Carlinhos
termina sua cerveja. Acende um cigarro. Lê alguma coisa. E depois
vai dormir.
A Gávea
está incandescente. Jornalistas, dirigentes, torcedores e curiosos
em geral vão se esbarrando pelos corredores, zunindo rumores e
fofocas que torpedeiam alvos a granel, ao sabor das preferências de
quem os cria. Há uma percepção quase unânime de que Carlinhos
será demitido e haverá uma reformulação geral da comissão
técnica, aproveitando a saída do preparador físico Lancetta, que
irá para o mundo árabe. Alguns dos jogadores mais experientes do
elenco douram os microfones com macios afagos a Carlinhos, mas no
recôndito de sua privacidade não perdoam a “deslealdade” com
Leandro. A diretoria não se pronuncia, vários dirigentes sabem que
também estão com seus cargos expostos. Apenas o presidente Márcio
Braga laconicamente elogia Carlinhos. “Tem feito um bom trabalho, com resultados”.
Ainda
distante, desfrutando o recesso relativamente longo imposto pela
diretoria a todo o Departamento de Futebol, Carlinhos vai
acompanhando o desenrolar dos acontecimentos. Quer continuar, mas
sabe ser difícil, não se apega ao cargo. Vai rechaçando
sistematicamente os jornalistas que lhe batem à porta, provavelmente
em busca de alguma fagulha, algum combustível que ajude a explodir o
já tenso ambiente na Gávea. Não se importa com as críticas
exageradas e as bobagens dos comentaristas de VT. Sorri diante dos
rumores de que o time, na verdade, é armado por Andrade. Diverte-se
com os veredictos de que recebeu o “time pronto” de Antônio
Lopes. Dá de ombros aos que o chamam de “banana”, “sem pulso”
e outros adjetivos pouco recomendáveis. “Há seis meses, esses
mesmos me chamavam de moderno, bruxo, estrategista”. O resultado. O
verdadeiro diretor, comandante, gestor, é o resultado. O resultado
promove, contrata, demite, elogia, critica. O deus da bola é o
resultado.

Carlinhos
segue se negando a comentar na imprensa esses rumores ou qualquer
outro assunto.
Chega o
dia da tal reunião. O clube, imerso em uma colossal bagunça, só
consegue definir a substituição do vice-presidente do futebol.
Assumirá uma raposa, daquelas felpudas, ex-presidente. Como esperado, a
decisão envolve um arranjo político. Nenhuma decisão sobre o
treinador é anunciada oficialmente.
O recesso
termina, Carlinhos volta a comandar normalmente os treinamentos na
Gávea. Nada de reuniões, nada de discussões. Um trabalho regular,
corriqueiro. Ao final, enfim o treinador resolve falar aos jornais.
Mas decepciona os que querem sangue. “Sou funcionário do clube,
enquanto assim o for trabalharei normalmente”. “Não me falaram
nada”. “Os rumores são perfeitamente normais, afinal perdemos um
título”, “Não tenho nenhum motivo para pedir demissão”,
entre outras amenidades.
“Carlinhos
já está demitido, e vai ser comunicado disso assim que eu assumir.
Ele sai por causa do péssimo ambiente com os jogadores.”

A
confusão enfim provoca efeitos em Carlinhos. Chateado e visivelmente
abatido, confessa a amigos estar desapontado com a forma como seu
nome está sendo exposto. Mas, diante dos microfones que lhe pululam
como moscas ao rosto, não sai uma palavra que lhe desvie do
equilíbrio. “Sigo meu trabalho”, “Quem me emprega e demite é
o Flamengo, não os jornais”, “nenhum treinador é eterno, claro
que posso sair a qualquer hora”. E continua trabalhando, comandando
os treinos, escolhendo (cauteloso, sem divulgar) os jogadores que
viajarão para a excursão que o clube fará pelo país em poucos
dias. “Não posso definir quem vai viajar, se eu não sei nem mesmo
se eu estarei nessa viagem”, é o máximo de “polêmica” que
Carlinhos dá à crônica.

Na saída
da sala, Carlinhos é abordado por um séquito aparelhado das mais
diversas ferramentas de mídia. Um bando sôfrego, ávido, que se lhe
aboleta à frente. Notícias, novidades, fatos. A ansiedade é
eloquente, insofismável. Ansiedade por notícias. Por fogo. Por sangue. O calor do momento pode fazer história.
O
treinador estaca, suspira fundo e devagar e, eivado de desconcertante
dignidade, esboça um pálido sorriso e, com um olhar tão tímido
quando profundo, anuncia: “Acabou. Não sou mais o treinador do
Flamengo. Só tenho a agradecer pela oportunidade. Agora por favor me deem licença”.
Alguns
jornalistas ainda tentam segui-lo, mas Carlinhos, a partir de agora,
não é mais notícia. Passa a pertencer ao passado, nessa alucinada
farândula de acontecimentos que move o mundo do futebol. Os alvos
agora serão dirigentes, conselheiros, sócios, amigos de reis, gente
capaz de alimentar as páginas dos periódicos com rumores, ruídos,
fofocas, gente que vem, gente que vai. O pacato treinador agora será, enfim, deixado em paz. Tornou-se pauta morta.

Carlinhos
abre uma cerveja. Acende um cigarro. Lê alguma coisa. E vai dormir.
* * *
Carlinhos
ainda foi chamado mais quatro vezes para dirigir o Flamengo. Um dos
mais vitoriosos profissionais da história do rubro-negro, é considerado
de forma quase unânime um dos maiores treinadores que trabalharam no
clube.