domingo, 9 de fevereiro de 2014

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos.

Vai começar a trajetória do Flamengo em mais uma Taça Libertadores, campeonato cuja ânsia por mais uma conquista começa a crescer em cada torcedor. Aproveito e conto um pouco da história da passagem de uma personagem cuja contribuição para o título de 1981 parece ser maior do que a posteridade registrou.

Boa leitura.

* * *

Certamente há vantagens em jogar futebol profissional.

Mas seguramente uma delas não é a obrigação de manter-se concentrado, longe da família, dos amigos e das tentações cotidianas, enclausurado junto a vários colegas de profissão com os quais se compartilha uma rotina entediante e previsível.

É exatamente o que está vivendo o grupo de jogadores flamengos, instalado no nobre e vetusto casarão que se reveste de hotel. Separados em bolsões de afinidade pessoal ou de simples afazer, os atletas entregam-se a atividades emocionantes como uma roda de carteado, um duelo no totó, uma rodada de dominó ou uma simples conversa fiada, cujo objeto provavelmente não é o perfil técnico ou tático do Olimpia, o próximo adversário.

Um ou outro grito mais animado por vezes rebenta no silêncio de uma tarde que se arrasta preguiçosamente, engessada no incurável tédio de uma rotina minuciosamente repetida por dias e dias, semanas e meses e anos.

Até que alguém entra, esbaforido, resfolegando. Aos gritos.

“Caiu, o Dino caiu!”

Copos se quebram, o baralho voa, todos, rigorosamente todos param o que estão fazendo em busca de detalhes. Há incredulidade, surpresa. Vários lamentam. Nem todos.

* * *

O Flamengo não vive um bom momento nesse início de 1981. A frustrada tentativa de conquista do tetracampeonato estadual cobra seu preço, e Coutinho, visivelmente desgastado com torcida, diretoria e jogadores (barrou vários titulares, como Nunes, Carpegiani e Luís Pereira) acaba entregando o cargo. Entra Modesto Bria, que desde o início não se mostra capaz de administrar a vasta oferta de problemas que lhe aparece. Sem os principais jogadores (Zico, Júnior e Tita), que estão disputando as Eliminatórias pela Seleção, Bria não consegue construir uma equipe-base. Para piorar, precisa administrar os vários problemas de relacionamento que vão pipocando aqui e ali (como o de Nunes, que vai aos jornais reclamar de um suposto boicote de jogadores), o inconformismo de alguns jogadores com a reserva e mesmo o de titulares que não aceitam atuar fora de posição. Impotente, vê o rodado Luís Pereira se escalar praticamente no grito para um jogo contra o Itabaiana-SE, enquanto a diretoria, farta do comportamento de alguns atletas, tenta se desfazer de vários jogadores, sem sucesso (os clubes compradores se assustam com os salários praticados na Gávea). Nesse contexto, o desempenho do time em campo é pífio e irregular, capaz de exibições impecáveis (8-0 Fortaleza) e de vexames constrangedores (0-3 Paysandu, em uma das melhores partidas de Raul no Flamengo, evitando um massacre). O destaque da primeira fase é o recém-contratado Peu, que brilha em algumas partidas periféricas (como a vitória por 3-2 sobre o CRB, em sua Maceió).

É quando o próprio Bria resolve dar o basta e se demite. A diretoria vai atrás de um nome que implante uma mentalidade mais profissional, disciplinadora. E se chega a Dino Sani.

Um dos melhores volantes da história do futebol brasileiro, campeão do mundo como jogador em 1958, Dino Sani é cria do futebol paulista e, após pendurar as chuteiras, também constroi sólida carreira como treinador, cujo ponto alto é o início da montagem do Internacional que irá dominar o futebol brasileiro dos anos 1970. Com olho clínico para a revelação de jogadores (efetivou Falcão e Carpegiani), Dino se sobressai pela busca do aprimoramento de fundamentos, pelo perfeccionismo e, principalmente, pela implacável observância aos princípios de hierarquia e disciplina, potencializada por seu temperamento forte e explosivo. Definitivamente, é o tipo de experiência com a qual os jogadores do Flamengo não estão acostumados.

Modesto Bria ainda dirige o Flamengo na segunda fase, em que, já com os jogadores de volta da seleção, consegue uma árdua classificação, superando o perigoso Colorado-PR na última rodada (2-1, virada, dois golaços de Zico).

O início do trabalho de Dino Sani já é polêmico. Improvisa Tita na ponta-esquerda, o que provoca fortes reclamações do jogador (e uma advertência). Depois, o treinador desiste e resolve trazer Tita de volta para o meio, agora deslocando Adílio para a ponta. Mais queixas, mais problemas. Desfigurado, desunido e desmotivado, o Flamengo não vai longe no Brasileiro.

Para a continuidade da temporada, Dino Sani identifica vários pontos a serem atacados. Cisma com Raul e seus descontraídos métodos de treinamento, entra em atrito com o goleiro e o barra, apesar de não confiar no inseguro Cantarele. Insatisfeito com o futebol vistoso de Leandro (em quem identifica excesso de firulas), efetiva o aplicado Nei Dias na lateral. Adílio, indisciplinado taticamente, é afastado do elenco e colocado à venda, bem como Fumanchu. O zagueiro Luís Pereira, que em nenhum momento justificou sua cara contratação, é negociado com o Palmeiras em troca do ponteiro Baroninho. Também chega o jovem e irrequieto ponta-direito Chiquinho, do Olaria. E Lico, retornando do Joinville e encostado, agrada a Dino, que o reintegra ao elenco.

Mas a principal queixa de Dino Sani está na preparação física. O treinador exige a realização de uma inter-temporada e o cancelamento dos amistosos previamente marcados. A diretoria resiste, mas diante da insistência de Dino (que inclusive ameaça se demitir) resolve-se dispor de um período de 12 dias para que os jogadores se condicionem melhor fisicamente. Essa medida se mostrará fundamental meses mais tarde, no desgastante final da temporada.

Além disso, Dino, ao estreitar a convivência com o grupo, começa a transmitir sua vasta experiência nas coisas do futebol sul-americano. Com longas passagens em times como Boca Juniors (jogador e treinador) e Peñarol (treinador), Dino conhece em minúcias as nuances das equipes que costumam disputar a Libertadores, a grande ambição flamenga para a temporada. E vai mostrando aos jogadores como se comportar diante das arbitragens, que tipo de provocações e ofensas esperar, como irritar os jogadores dos outros países, como escapar das faltas violentas (“os zagueiros costumam entrar com o pé meio dobrado, aí atinge bola e tornozelo, machuca você e não é marcada falta”), entre outros truques. Um dos mais entusiasmados é Nunes, que passa a utilizar artifícios como besuntar suas pernas em fartas camadas de gelol, para, no calor da luta, lambuzar suas mãos e esfregá-las nos olhos dos zagueiros (em cruzamentos é fatal). Ou chupar cubos de gelo e arremessá-los no rosto dos adversários. São horas e horas de um verdadeiro treinamento intensivo com um especialista nas manhas e mutretas do futebol hermano.

Aos poucos, o trabalho começa a dar resultado. Apesar de um início instável, o Flamengo conquista a Taça Guanabara, apresentando na trajetória alguns momentos convincentes, como a vitória sobre o Vasco (1-0) ou mesmo brilhantes, como os sonoros 7-0 sobre o Americano ou a inesquecível excursão a Napoli, com autoritários dez gols em duas partidas. Alguns jogadores, como Zico, Júnior, Leandro (de volta ao time) e Nunes estão voltando a render o que sabem, enquanto Dino vai dando espaço a revelações como o jovem Mozer. Além disso, o time consegue um heroico empate contra o Atlético-MG no Mineirão (2-2, revertendo uma desvantagem de dois gols) e goleia sem dificuldades o Cerro Porteño (5-2 no Maracanã), assumindo a liderança de seu grupo na Libertadores.

Mas o temperamento forte de Dino continua fomentando crises. Certo dia, Andrade se atrasa em trinta minutos, é advertido e expulso de um treino, o que causa choque, especialmente pelo histórico exemplar do jogador. Adílio, novamente no time, é orientado a atuar na ponta-esquerda em um Fla-Flu. Desobedece, o Flamengo perde o jogo e Adílio é novamente afastado, somente retornando ao grupo após um humilhante pedido público de desculpas. Tita segue forçando sua saída, inconformado com a ponta. Rondinelli, que a cada dia perde mais espaço com Mozer, vai aos jornais reclamar publicamente da reserva. Enfim, o ambiente até pode ser bom, mas está longe de apresentar leveza.

E vem a gota d'água.

Estreia no Segundo Turno, Maracanã, Serrano de Petrópolis. O Flamengo vai vencendo (1-0). Falta na entrada da área flamenga. O jogador petropolitano não cobra direto, bate fraco, só pra encobrir a barreira, jogada ensaiada, outro atacante vem na corrida. Mozer vira de costas, posiciona-se, acompanha a bola e se antecipa. Mas, ao invés do chutão ou do toque fácil a Cantarele, tenta aparar a bola no bico da chuteira, qual um domingos. Algo sai errado, e Mozer perde o controle da bola. O atacante chega batendo, e por pouco o Serrano não empata. Encolerizado, Dino tira Mozer da partida de imediato. O jovem zagueiro sai de campo aos prantos. Dino vai aos jornais e cospe vespa contra a atitude “anti-profissional” do jogador, anunciando sua imediata barração. No entanto, volta atrás e confirma Mozer para o jogo contra o Olimpia, o que enfurece Rondinelli, que se queixa de “falta de respeito” nos jornais. A Gávea de repente se vê imersa em crise, às vésperas de uma partida importantíssima pela Libertadores. É quando o presidente Dunshee de Abranches, também conhecido pelo seu temperamento forte, resolve intervir na questão. É taxativo. “Dino está fora”.

A notícia cai como uma bomba nos meios esportivos. Afinal, o Flamengo é o campeão da Taça Guanabara, líder na Libertadores e já está na final do Estadual. Apesar dos atritos, o grupo de jogadores comporta-se corretamente, atuando com empenho e aplicação, sem o menor indício de corpo-mole. Mas está feito. Para o jogo contra o Olimpia, o recém-aposentado Carpegiani assume de improviso enquanto a diretoria tenta a contratação de Nelsinho Rosa, campeão em 80 com o Fluminense. Os principais líderes do elenco (exceto Raul) oferecem um almoço de desagravo a Dino, que curiosamente ao sair se mostra descontente mas sem qualquer mágoa com os jogadores.

O Flamengo seguirá sua trajetória, ainda precisando de um tempo até o ajuste e o encaixe final de suas peças, que redundará no período mais glorioso de sua história, uma Era festejada ontem, hoje e sempre.


Uma caminhada que, entre vários fatores, se deve a algumas medidas impopulares e enérgicas do controvertido Dino Sani.