O sucesso inebria.
Irromper
das profundas sendas do anonimato, perceber-se alvo de elogios, loas,
comentários diversos, sentir-se importante. Sim, é muito bom
receber olhares respeitosos dos que outrora apenas lhe dedicavam
desprezo e ignorância, é gratificante perceber que as horas e horas
de trabalho duro, inglório e absolutamente desprovido de romantismo
começam a render suculentos frutos.
E aí sobrevêm a mais
traiçoeira das armadilhas. A sensação do topo.
1956.
O São
Cristóvão, pequena e simpática agremiação sediada na Rua
Figueira de Melo, Zona Norte carioca, começa o Campeonato Estadual
de 1956 sem fugir muito da rotina que lhe é destinada há vários
anos. Perder e apanhar dos grandes e fazer figuração. As goleadas
sofridas para Flamengo (5-2), Fluminense (4-2), Bangu (5-1) e Vasco
(5-1), nesse contexto, não suscitam qualquer tipo de surpresa, tal
como a “emocionante” briga com o Bonsucesso para escapar da
lanterna da competição.
Súbito,
algo muda.
A equipe
começa a encaixar, o sistema defensivo passa a suportar bem a
pressão dos ataques adversários, e o São Cristóvão, à base de
muita correria e disposição, começa a colher resultados melhores.
O primeiro espasmo acontece quando o São Cri-Cri paralisa o celebrado
ataque do Botafogo e segura um festejado 1-1. Mais algumas rodadas se
passam, e tem início o returno. Logo de cara, os alvos derrotam o
Bangu, 1-0. A seguir outra façanha, o empate com o América (1-1),
atual vice-campeão e candidato real ao título.
É o que
basta. Com uma das melhores campanhas do returno, o São Cristóvão
começa a ser festejado nas páginas esportivas, alguns jogadores,
como o goleiro Rui, são entrevistados, viram celebridades
instantâneas. De repente, o time alvo de Figueira de Melo se torna a
sensação do campeonato, vira objeto de curiosidade. E, adulado e
acariciado, já imagina ser viável superar o próximo desafio.
Vencer o Flamengo, tricampeão carioca, no Maracanã.
O
Flamengo de Fleitas Solich vive literalmente um inferno astral. A
sucessão de azares e lesões, o desequilíbrio de um elenco onde
convivem um ataque devastador e uma defesa frágil e o desgaste
natural da relação entre seu treinador e o elenco (que fez com que
o craque Rubens fosse negociado) tornam extremamente acidentada a
trajetória flamenga na briga pelo tetracampeonato, onde suas chances
são apenas matemáticas. O rubro-negro tropeça em demasia, perde
pontos preciosos para equipes como Olaria e Bonsucesso, sofre
goleadas vexatórias, não vive realmente um bom momento. Com apenas
uma vitória nos últimos cinco jogos, o time não parece provocar a
mais remota motivação em seu torcedor, que já se conforma em
perder a hegemonia da cidade, depois de três gloriosos anos.
A partida
entre Flamengo e São Cristóvão é marcada para a tarde de sábado,
no Maracanã. O Flamengo segue desfalcado de Chamorro, Jadir e de
dois de seus craques, o maestro Dequinha e o goleador Dida.
A
imprensa trata a partida como o embate entre uma força decadente e
cansada e o promissor e simpático clube pequeno que se traveste de
grande. Um desavisado imaginará, ao ler os jornais, que o azarão é
o Flamengo.
O sucesso
inebria. E nada pode ser mais perigoso.
O público
no Maracanã é modesto para os padrões da época, 40 mil pagantes.
O Flamengo entra em campo, é aplaudido de forma meio protocolar e
alinha em seu lado tradicional, à esquerda das cabines. O São
Cristóvão vem a seguir, altivo, orgulhoso, trajado em seu impecável
uniforme branco, límpido. Ignorando aplausos e apupos, seus
jogadores acenam pimpões para o público e capricham em suas
melhores poses para os fotógrafos que cobrirão a tarde esportiva.

De um
lado, os jovens do São Cristóvão, imaculados em sua alvura,
pescoço empinado, embaixadinhas minuciosamente coreografadas,
bochechas rosadas, risonhos, sorridentes, exalando confiança na
vitória sobre o pretensamente desfigurado adversário. Do outro, um
Flamengo sério, poucas palavras, sisudo, em silêncio, mordido, o
olhar penetrante do animal ferido, movendo-se lento, cauteloso.
Predador.
Sai a
bola com o São Cristóvão. Seus jogadores abusam das firulas, das
voltinhas, do toque refinado. Um branquinho mata no peito, tenta o
chapéu, leva uma banda, põe as mãos nas cadeiras, dá um corrupio.
O Flamengo esgueirado assiste ao balé dos alvos, que tocam e tocam
bonitinho, mas não avançam. Parecem mais preocupados com a plateia que com o jogo.
Subitamente,
o time branco se anima com a postura cautelosa do Flamengo, perde o
medo e avança. Avança animado, com o destemor dos incautos. Não percebe a armadilha. Troca
dois ou três passes na intermediária flamenga. O desarme. A bola
esticada na ponta. A correria. O passe preciso. Gol.
Don
Fleitas manda o Flamengo seguir em seu campo. O São Cristóvão
parece sentir o golpe, mas, como se estivesse em um clássico,
resolve subir com tudo buscando o empate. Ainda cria uma ou outra
chance, até que nova bola é perdida no campo adversário. Novo
lançamento. Novo passe preciso. Gol.
Dois a
zero. Evaristo.
É o
bastante. Agora Fleitas Solich dá a ordem na beira do campo:
“AVANCEM!”
E o
Flamengo solta sua cavalaria, que passa a semear o terror na
desnorteada defesa branca, simplesmente despreparada para a
adversidade. E sobrevém um tal de zagueiros se esbarrando, volantes
correndo para encontrar abrigo, defensores lutando pela
sobrevivência. Impiedoso, implacável, determinado, o Flamengo não
se desvia minimamente da disputa. Há ira em seus olhos, a indignação
contra todos os que o tripudiaram, espezinharam, mataram. E a raiva
explodirá em gols, muitos gols, abafada resposta de um grupo
machucado.
Trinta
minutos, 3-0. O goleiro Rui até justifica a
breve fama, pegando o que pode e o que não pode. A trave sibila, a área alva se torna um campo de batalhas onde se despeja
uma saraivada de bolas. 4-0. Vítima da ansiedade e de uma
agressividade há muito represada, o Flamengo não consegue mais
gols. E assim termina o primeiro tempo.
Aplausos.
Há muito negados.
Mais
tranquilo, o Flamengo entra na segunda etapa pensando mais as jogadas, as
tabelas saindo com mais esmero, ensaiadas. O time se torna ainda mais
letal, porque, além de determinado, agora trabalha com calma. E há
o adversário, que simplesmente se rende em espectro.
Alguns se cansam precocemente (talvez por certo desleixo em treinos),
outros apenas resignam-se a assistir à ciranda rubro-negra. A
partida se torna o jogo de um time só.
A
verdadeira materialização de um massacre.

O
Flamengo só esboça sucumbir ao cansaço e à saciedade após o 16º
minuto e o sétimo gol. É quando o atacante Nonô, do São
Cristóvão, consegue riscar uma jogada individual e diminuir. Mas já
na saída a bola é lançada a Evaristo, que se embola com os
zagueiros, mas, mesmo desequilibrado, encaçapa o oitavo. Com os 8-1,
a partida cai de ritmo, o resignado São Cristóvão agora contempla
o cansado Flamengo rodar a bola em seu campo. Tudo leva a crer que o
elástico placar não será mais alterado.
Mas o
atacante Neca, do São Cristóvão, resolve fazer um nome, busca uma
tabela, livra-se do marcador e faz o segundo gol de seu time. Por
algum motivo, o tento alvo reacende o Flamengo, que rebenta de sua
letargia e passará os últimos 15 minutos atacando numa ânsia
suicida, talvez para deixar uma derradeira impressão.


O
resultado é recebido com certa indiferença pelos magoados jogadores
flamengos, que no fundo ainda lamentam a perda do tetra. Fleitas
Solich, sempre manhoso, afirma que “essa goleada é o que de pior
poderia nos acontecer, pois pode desviar o foco pro próximo jogo,
que é o Vasco”. Os temores de Don Fleitas não se confirmarão, o
Flamengo vencerá o Vasco e ensaiará uma arrancada final, mas a
distância para a ponta é abissal, intransponível. A equipe
terminará o campeonato em uma opaca quarta colocação.
No
entanto, ao menos, essa temporada servirá para fazer história. Pois
naquela tarde de sábado, que tinha tudo para se esgueirar anônima,
o Flamengo estampa a maior goleada da história do Maracanã. Em nenhum momento da história o gigante de concreto terá presenciado uma superioridade tão verborrágica, tão caudalosa, tão despudorada.
O grito surdo de um leviatã.