domingo, 23 de fevereiro de 2014

Alfarrábios do Melo


O sucesso inebria.

Irromper das profundas sendas do anonimato, perceber-se alvo de elogios, loas, comentários diversos, sentir-se importante. Sim, é muito bom receber olhares respeitosos dos que outrora apenas lhe dedicavam desprezo e ignorância, é gratificante perceber que as horas e horas de trabalho duro, inglório e absolutamente desprovido de romantismo começam a render suculentos frutos.

E aí sobrevêm a mais traiçoeira das armadilhas. A sensação do topo.

1956.
O São Cristóvão, pequena e simpática agremiação sediada na Rua Figueira de Melo, Zona Norte carioca, começa o Campeonato Estadual de 1956 sem fugir muito da rotina que lhe é destinada há vários anos. Perder e apanhar dos grandes e fazer figuração. As goleadas sofridas para Flamengo (5-2), Fluminense (4-2), Bangu (5-1) e Vasco (5-1), nesse contexto, não suscitam qualquer tipo de surpresa, tal como a “emocionante” briga com o Bonsucesso para escapar da lanterna da competição.

Súbito, algo muda.

A equipe começa a encaixar, o sistema defensivo passa a suportar bem a pressão dos ataques adversários, e o São Cristóvão, à base de muita correria e disposição, começa a colher resultados melhores. O primeiro espasmo acontece quando o São Cri-Cri paralisa o celebrado ataque do Botafogo e segura um festejado 1-1. Mais algumas rodadas se passam, e tem início o returno. Logo de cara, os alvos derrotam o Bangu, 1-0. A seguir outra façanha, o empate com o América (1-1), atual vice-campeão e candidato real ao título.

É o que basta. Com uma das melhores campanhas do returno, o São Cristóvão começa a ser festejado nas páginas esportivas, alguns jogadores, como o goleiro Rui, são entrevistados, viram celebridades instantâneas. De repente, o time alvo de Figueira de Melo se torna a sensação do campeonato, vira objeto de curiosidade. E, adulado e acariciado, já imagina ser viável superar o próximo desafio. Vencer o Flamengo, tricampeão carioca, no Maracanã.

O Flamengo de Fleitas Solich vive literalmente um inferno astral. A sucessão de azares e lesões, o desequilíbrio de um elenco onde convivem um ataque devastador e uma defesa frágil e o desgaste natural da relação entre seu treinador e o elenco (que fez com que o craque Rubens fosse negociado) tornam extremamente acidentada a trajetória flamenga na briga pelo tetracampeonato, onde suas chances são apenas matemáticas. O rubro-negro tropeça em demasia, perde pontos preciosos para equipes como Olaria e Bonsucesso, sofre goleadas vexatórias, não vive realmente um bom momento. Com apenas uma vitória nos últimos cinco jogos, o time não parece provocar a mais remota motivação em seu torcedor, que já se conforma em perder a hegemonia da cidade, depois de três gloriosos anos.

A partida entre Flamengo e São Cristóvão é marcada para a tarde de sábado, no Maracanã. O Flamengo segue desfalcado de Chamorro, Jadir e de dois de seus craques, o maestro Dequinha e o goleador Dida.

A imprensa trata a partida como o embate entre uma força decadente e cansada e o promissor e simpático clube pequeno que se traveste de grande. Um desavisado imaginará, ao ler os jornais, que o azarão é o Flamengo.

O sucesso inebria. E nada pode ser mais perigoso.

O público no Maracanã é modesto para os padrões da época, 40 mil pagantes. O Flamengo entra em campo, é aplaudido de forma meio protocolar e alinha em seu lado tradicional, à esquerda das cabines. O São Cristóvão vem a seguir, altivo, orgulhoso, trajado em seu impecável uniforme branco, límpido. Ignorando aplausos e apupos, seus jogadores acenam pimpões para o público e capricham em suas melhores poses para os fotógrafos que cobrirão a tarde esportiva.

Espectadores mais vividos começam a perceber que estão respirando o pesado ar que precede as catástrofes.

De um lado, os jovens do São Cristóvão, imaculados em sua alvura, pescoço empinado, embaixadinhas minuciosamente coreografadas, bochechas rosadas, risonhos, sorridentes, exalando confiança na vitória sobre o pretensamente desfigurado adversário. Do outro, um Flamengo sério, poucas palavras, sisudo, em silêncio, mordido, o olhar penetrante do animal ferido, movendo-se lento, cauteloso. Predador.

Sai a bola com o São Cristóvão. Seus jogadores abusam das firulas, das voltinhas, do toque refinado. Um branquinho mata no peito, tenta o chapéu, leva uma banda, põe as mãos nas cadeiras, dá um corrupio. O Flamengo esgueirado assiste ao balé dos alvos, que tocam e tocam bonitinho, mas não avançam. Parecem mais preocupados com a plateia que com o jogo.

Subitamente, o time branco se anima com a postura cautelosa do Flamengo, perde o medo e avança. Avança animado, com o destemor dos incautos. Não percebe a armadilha. Troca dois ou três passes na intermediária flamenga. O desarme. A bola esticada na ponta. A correria. O passe preciso. Gol.

Índio abre o placar, Flamengo 1-0, três minutos.

Don Fleitas manda o Flamengo seguir em seu campo. O São Cristóvão parece sentir o golpe, mas, como se estivesse em um clássico, resolve subir com tudo buscando o empate. Ainda cria uma ou outra chance, até que nova bola é perdida no campo adversário. Novo lançamento. Novo passe preciso. Gol.

Dois a zero. Evaristo.

É o bastante. Agora Fleitas Solich dá a ordem na beira do campo: “AVANCEM!”

E o Flamengo solta sua cavalaria, que passa a semear o terror na desnorteada defesa branca, simplesmente despreparada para a adversidade. E sobrevém um tal de zagueiros se esbarrando, volantes correndo para encontrar abrigo, defensores lutando pela sobrevivência. Impiedoso, implacável, determinado, o Flamengo não se desvia minimamente da disputa. Há ira em seus olhos, a indignação contra todos os que o tripudiaram, espezinharam, mataram. E a raiva explodirá em gols, muitos gols, abafada resposta de um grupo machucado.

Trinta minutos, 3-0. O goleiro Rui até justifica a breve fama, pegando o que pode e o que não pode. A trave sibila, a área alva se torna um campo de batalhas onde se despeja uma saraivada de bolas. 4-0. Vítima da ansiedade e de uma agressividade há muito represada, o Flamengo não consegue mais gols. E assim termina o primeiro tempo.

Aplausos. Há muito negados.

Mais tranquilo, o Flamengo entra na segunda etapa pensando mais as jogadas, as tabelas saindo com mais esmero, ensaiadas. O time se torna ainda mais letal, porque, além de determinado, agora trabalha com calma. E há o adversário, que simplesmente se rende em espectro. Alguns se cansam precocemente (talvez por certo desleixo em treinos), outros apenas resignam-se a assistir à ciranda rubro-negra. A partida se torna o jogo de um time só.

A verdadeira materialização de um massacre.

Torna-se enfadonho descrever na literalidade o desenrolar dessa história. Os minutos se seguirão com um Flamengo contrito, insaciável e abandonado a uma busca irracional por mais e mais gols, como que procurando algum tipo de resposta. E um São Cristóvão aparvalhado, cada bola que lhe penetra as entranhas gritando-lhe sua condição de pequeno. E inerte, passivo, as estocadas flamengas não lhe provocando qualquer reação.

O Flamengo só esboça sucumbir ao cansaço e à saciedade após o 16º minuto e o sétimo gol. É quando o atacante Nonô, do São Cristóvão, consegue riscar uma jogada individual e diminuir. Mas já na saída a bola é lançada a Evaristo, que se embola com os zagueiros, mas, mesmo desequilibrado, encaçapa o oitavo. Com os 8-1, a partida cai de ritmo, o resignado São Cristóvão agora contempla o cansado Flamengo rodar a bola em seu campo. Tudo leva a crer que o elástico placar não será mais alterado.

Mas o atacante Neca, do São Cristóvão, resolve fazer um nome, busca uma tabela, livra-se do marcador e faz o segundo gol de seu time. Por algum motivo, o tento alvo reacende o Flamengo, que rebenta de sua letargia e passará os últimos 15 minutos atacando numa ânsia suicida, talvez para deixar uma derradeira impressão.

E assim se faz. O Flamengo termina a partida residindo no campo e na área do São Cristóvão, atirando a esmo, fazendo gols, tomando a bola na saída, cercando a área, atirando, fazendo mais gols. Um espetáculo absolutamente inusitado e fora de um padrão informal onde, após alguns tentos, o grande deixa o pequeno em paz e fica tocando sua bola. Nada que se assemelhe à fúria animalesca do devastador ataque rubro-negro, Rolo Compressor revivido para as 40 mil surpresas e felizes testemunhas.

Fim de jogo, aplausos, fortes aplausos. O balanço da hecatombe, 5 de Evaristo, 4 de Índio, mais Joel, Luís Roberto e Paulinho, um de cada. Flamengo 12-2 São Cristóvão. DOZE A DOIS.

O resultado é recebido com certa indiferença pelos magoados jogadores flamengos, que no fundo ainda lamentam a perda do tetra. Fleitas Solich, sempre manhoso, afirma que “essa goleada é o que de pior poderia nos acontecer, pois pode desviar o foco pro próximo jogo, que é o Vasco”. Os temores de Don Fleitas não se confirmarão, o Flamengo vencerá o Vasco e ensaiará uma arrancada final, mas a distância para a ponta é abissal, intransponível. A equipe terminará o campeonato em uma opaca quarta colocação.


No entanto, ao menos, essa temporada servirá para fazer história. Pois naquela tarde de sábado, que tinha tudo para se esgueirar anônima, o Flamengo estampa a maior goleada da história do Maracanã. Em nenhum momento da história o gigante de concreto terá presenciado uma superioridade tão verborrágica, tão caudalosa, tão despudorada.

O grito surdo de um leviatã.