domingo, 15 de dezembro de 2013

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos. O texto que deixo a seguir foi originalmente publicado em 2009,  e é republicado agora com algumas adaptações menores. Infelizmente, vai se tornando a cada dia mais atual. Boa (se possível) leitura.

* * *

Um ano qualquer, daqui a um punhado de anos. É a decisão de mais um campeonato estadual, Flamengo e Botafogo, como se tornara hábito desde o já longínquo pentatri de 2009. Na partida final, o Flamengo joga melhor e vence por 1-0 com um gol de pênalti. O herói do jogo é cercado pelos microfones, após o jogo, e declara: “é, jogamos bem, merecemos a vitória, agora é confiar no trabalho da rapaziada do tribunal para gente garantir mais esse título.”

Não há festa na saída do estádio. Todos sabem que o campeonato ainda não está decidido. Ainda na noite de domingo, um procurador do tribunal avisa que vai entrar com representação. Quer anular a partida. Alega ter havido erro na marcação do pênalti. Deseja que o lance seja julgado em plenário.

Logo na manhã de segunda-feira, o tribunal recebe e aceita a representação. O julgamento é marcado para quarta-feira, às 21:50, depois da novela. A Globo vai transmitir ao vivo, para todo o Brasil, menos para o Rio de Janeiro. Começam a aparecer as vinhetas, anunciando a transmissão, “direto da sede do tribunal”. São montados telões, espalhados pela cidade, em grandes áreas cercadas, onde se pode acompanhar a transmissão pelo PFC. O acesso custa R$ 30, mas se pode pagar R$ 15 com meia-entrada. Para evitar confusão, há áreas específicas para cada torcida.

O Flamengo está tranqüilo. Confia em sua estrela, o emérito advogado Arthur Pedrosa, que é o destaque da competição até agora, com a impressionante marca de 25 jogadores absolvidos e dez efeitos suspensivos concedidos, o que lhe valeu o apelido de Mago das Palavras. Do outro lado, o Botafogo aposta em seu emotivo advogado, Lacrímio Buarque, famoso por sua verborragia e eloqüência. O ambiente é tenso, os dois lados evitam declarações polêmicas. Não querem dar munição ao adversário.

Chega o grande dia. O trânsito no Rio de Janeiro é intenso. Vive-se o clima da decisão. A torcida do Flamengo rapidamente lota as áreas colocadas à sua disposição, e se posta nervosa diante dos telões. Já nos locais reservados ao Botafogo são nítidos os espaços vazios. Mas a pequena torcida alvinegra também faz barulho e canta. Parece animada.

Antes do julgamento propriamente dito, o tribunal aprecia algumas questões menores. Um goleiro do Friburguense é suspenso por 30 dias, por ter retardado a cobrança de um tiro de meta. Foi condenado por “atitude antidesportiva”. Um jogador do Bangu recebe cinco jogos de suspensão, por ter reclamado de uma marcação do árbitro, enquadrado por desacato. Um zagueiro do América recebe punição de três jogos, por ter puxado a camisa do atacante adversário na cobrança de um escanteio. E por fim um atleta do Vasco é apenado com dois jogos, por ter tentado cometer falta em um atacante adversário num contragolpe que redundou em gol.

Não houve tempo para julgar todos os casos, pois a vinheta de encerramento da novela já assinala que está na hora da grande batalha. Os julgamentos pendentes são marcados para o dia seguinte. A tensão agora é flagrante entre os representantes dos dois clubes. Executa-se o hino nacional. A transmissão se inicia. Vai começar o processo.

O procurador exibe os motivos que o levaram a oferecer a denúncia. Alega ter dúvidas quanto à marcação do pênalti. Narra que acompanhava a partida pelo canal pago PFC, quando viu o lance, em que o zagueiro botafoguense dá um carrinho por trás do atacante rubro-negro, sem bola. Informa ter tido sérias dúvidas quanto à correção da marcação, pois a equipe de transmissão, formada pelo narrador Ronny Porto e pelo comentarista Pablo Vasconcelos, afirmara categoricamente que o lance fora legal e que o atacante do Flamengo simulara a falta. Nem mesmo o fato do jogador rubro-negro ter sido substituído, saindo contundido após o lance, foi capaz de dirimir suas dúvidas, por isso desejava que a jogada fosse analisada mais detidamente pelo tribunal. Se fosse o caso, a decisão do árbitro poderia ser revertida e a partida anulada.

O primeiro a entrar em campo, digo, no plenário é o advogado botafoguense Lacrímio Buarque. Porte atarracado, expressão séria e compenetrada, quase entristecida. Traja elegante terno preto, camisas brancas e gravata listrada em preto e branco. O modesto público alvinegro saúda seu ídolo, com o grito que já se tornava célebre: “Buáááááááááárqueeee”.

Buarque inicia a sua explanação.  Alega ser um absurdo o que estão fazendo com o Botafogo. Eloqüente, afirma que mais uma vez, como vem ocorrendo desde 1910, estão querendo roubar um campeonato do alvinegro. Argumenta que jogadores como Didi ou Nilton Santos tiveram que lutar contra tudo e contra todos para ser campeões, que nunca obteve apoio da Federação contra as arbitragens tendenciosas e escandalosas. Pede a anulação da partida e suspensão para o jogador do Flamengo, cinco jogos por simular infração mais 30 dias por simular contusão. Sua argumentação é loquaz, crescente e impressiona. Vai agitando os braços, teatral. À medida que vai desenvolvendo sua retórica, o rosto de Buarque se crispa. Emociona-se, vai às lágrimas. A torcida botafoguense entra em transe, e o grito “Buááááááááááárqueeee” torna-se mais alto e forte. O mirrado advogado, visivelmente comovido, encerra sua participação com um grito aberto, caudaloso: “GARRINCHAAAA!!!!!”

A torcida do Flamengo está apreensiva. A choradeira, ops, a explanação do representante botafoguense impressionara. Em outros tempos, esse discurso seria motivos de riso, mas o tribunal não era uma ciência exata. Podia perfeitamente se impressionar com a arenga de Lacrímio.

Mas toda a preocupação se dissipou com a entrada em plenário do craque flamengo Arthur Pedrosa, o Mago das Palavras. Com fisionomia altiva, denotava extrema tranqüilidade. Cumprimenta com simpatia, chamando pelo nome todos os juízes que irão julgar o caso. Seu magnetismo pessoal é irresistível, irradia confiança a cada gesto. Traja terno preto, com camisa vermelha e gravata listrada em rubro-negro. Inicia sua argumentação com objetividade cortante: pede para ver o lance, é atendido. Liga-se o projetor, que passa a exibir para todos a jogada. Pode-se ver, então, que a bola fora lançada ao atacante do Flamengo, que ganha na corrida do lateral botafoguense e entra na área em diagonal. O zagueiro, no desespero, vem na cobertura. Sua única alternativa é o carrinho. Tira os dois pés do chão e acerta por trás o rubro-negro, que armava o chute. O árbitro não titubeia: pênalti. O avante flamengo não pode continuar no jogo. O joelho havia sido atingido.

Pedrosa não diz nada. Deixa as imagens falarem por si. O som está mudo (exigência do advogado flamengo). Após a exibição do lance, o Mago das Palavras olha fixamente em direção aos julgadores, balança suave e negativamente a cabeça e, com semblante grave, comenta, pausadamente: “Uma voadora, senhores magistrados. Uma voadora...”

Os rubro-negros vão ao delírio. Pedrosa está aniquilando os argumentos adversários com a força das imagens. O Mago agora vai falar. Quando todos esperam um discurso eloqüente e cheio de figuras retóricas, Pedrosa apenas elabora uma frase, dita de forma direta, cortante, como uma faca: “Senhores magistrados, a regra é clara.” Cumprimenta a todos e se despede.

Um lance de gênio, que faz a torcida rubro-negra ir abaixo. A massa flamenga agora canta a plenos pulmões, exalta seu ídolo: “Pedroooooooosa, é melhor que Ruy Barboooooooosa”. Todos estão desconcertados, estarrecidos. Que firmeza, que sagacidade, que categoria no manejo das palavras! A parada parece ganha. E com efeito, quando sai o resultado do julgamento, o título do Flamengo é confirmado, com um placar de 6-0 na votação, e a cidade está em festa. “A regra é clara” torna-se um bordão, todo torcedor do Flamengo, ao ver um raro botafoguense, não resiste: “bom dia, a regra é clara!”. Pensa-se em erguer um busto para Pedrosa na sede da Gávea.

* * *

No dia seguinte, a movimentação nas redes sociais é um bom termômetro da repercussão do jogão, quer dizer, ahn, do “julgamentão”: é exibido o borderô dos telões e alguns reclamam das cotas retidas. Torcedores se mostram preocupados com a reposição do elenco jurídico, pois o craque Arthur Pedrosa tem uma proposta irrecusável de um time holandês de Haia e deve sair. Uma coluna é publicada, comparando-se a frase mágica de Pedrosa ao gol de falta do Pet e à cabeçada do Rondinelli. É lançada a réplica da gravata de Pedrosa, à venda no site oficial, e a lista de espera para a compra é grande. Alguns mais exigentes reclamam, “chega de ganhar julgamentinho no TJD, o Flamengo tem que pensar grande!”. Defende-se a construção de um Centro de Formação para novos advogados (“todos os clubes já têm o seu”). E o GE.com publica fotos inéditas da recém-eleita "Musa do Tribunal".

Nos jornais, vastas reportagens de página inteira contam a história de Arthur Pedrosa, o ídolo de uma nação. Outras matérias tratam de como nasceu a genial frase “A regra é clara”. E um ou outro periódico mostra uma pequena nota, quase no rodapé, indicando que domingo o Flamengo joga, e o treinador tem dúvidas para escalar o time. E quem se importa?


* Este é um texto de ficção. Qualquer semelhança com nomes e/ou fatos reais terá sido mera coincidência, e espero que assim permaneça.