domingo, 17 de novembro de 2013

Alfarrábios do Melo

“As vacas estão gordas.”

A frase do cupincha saiu assim, direta, seca, de uma sinceridade quase infantil, sem qualquer pudor ou receio, revestida por uma robusta camada de espontaneidade, o descompromisso dos que se acreditam impunes, eternos, inatingíveis. É meio recente, coisa de um e meio a dois anos atrás.

 “As vacas estão gordas.”

Aí estava, estampada com toda sua cortante crueza, a melhor definição para o último triênio vivido pelo CR Flamengo, assolado pela mais devastadora das tempestades, o mais medieval dos momentos obscurantistas, a mais iníqua das noites, a pior página da história recente e não tão recente da mais que centenária instituição.

“As vacas estão gordas”. Não havia mais o que falar, o que explicar, o que traduzir.

Até que um dia isso chegou ao fim.

Porque o Flamengo cansou de ser espoliado, está farto de manter escancarados os acessos para que diferentes atores recheiem seus largos alforjes, resolveu reter para si o que lhe é de direito, afastando do processo toda sorte de comensais, cracas e outros parasitas, está se erguendo do amplo tapete de feno onde permaneceu deitado por décadas, mamilos expostos ao alto, úmidos, fartos, sempre escorrendo abundante e caudaloso o fácil e interminável néctar de um paraíso onde há espaço para todos os amigos de reis, príncipes e até vassalos.

O Flamengo cometeu o supremo crime de querer ficar com o que lhe é de direito.

Praticou o grave delito de se pretender forte, pujante, progressista, inovador, de exercer o protagonismo para o qual foi forjado desde os tempos da República Paz e Amor. Um Flamengo prenhe de vida própria ofende, agride, é um murro na cara dos mais renitentes vanguardistas do atraso, é um tapa na orelha dos que ora não mais dispõem da locupletação, do patrimonialismo, do escambo, da untuosa rede de favores, do “sabe com quem está falando”.

Daí há reações.

A estridência de setores da mídia impressa, falada e televisada que, movidos por ódios políticos, pessoais, picuinhas geradas pela perda de privilégios a soldo ou mesmo simples aversão à instituição, intrigam, garimpam o tumulto, espremem factoides dia sim, dia também, quando simplesmente não travestem veleidades em verdades, espancando uma realidade fática que, ao lhes ser exposta em carne viva, os ofende, deprime, tripudia. Ou os protestos alaranjados, faixas no miolo de torcidas, ameaças, coações, agressões físicas, entre outras manifestações de um amplo arco de resistência composto pelos mais diversos setores que, historicamente, sempre vicejaram à sombra de relações institucionais fluidas, molentes, derretidas por redes pessoais vaporosas e volúveis como a rodada do fim de semana.

Essas não são facetas expressivas de reação. Desgastantes, fato, mas incapazes de criar instabilidade, porque apenas refletem o uivo desesperado e esganiçado dos que se debatem inconformados com a inexorabilidade de seu melancólico desenlace, imersos na lama e no esterco que abarrota as latas de lixo da história.

Apenas estrebucham.

Diferente, bem diferente, é o que se presenciou na semana próxima passada. Que não é irrelevante. Não é inexpressivo. Não suscita despreocupação.

O que se viu, viveu e relatou é aviltante. Revoltante. Indigna. Envergonha.

Os motivos podem ser diversos. Política, ou no caso, politicalha interna, reação de setores talvez incomodados pela virtual perda de faturamento no ancestral cambismo, logo no mais rentável jogo do ano, necessidade de surfar no raso populismo dos anos 50, ou simplesmente a anabolização de alguma polêmica que ajude a vender jornais.

Mas nada, absolutamente nenhuma justificativa valida a deprimente pantomima exposta nas dependências do CR Flamengo e fora dele, onde órgãos de estado foram aparelhados para funcionar a serviço do mais repugnante proselitismo político, operando ao sabor de pageviews e índices de audiência, escravo de um “senso comum” imposto e motivado por diferentes apetites.

Foram estapeados os mais basilares princípios de funcionamento das leis do mercado, os mais viscerais mandamentos do Direito Constitucional, adotaram-se práticas que remetem aos mais nefandos momentos da Gestapo, da Stasi, da Pide. Tomaram de assalto um domicílio privado, tentaram saquear documentos estratégicos, sequestraram um dirigente ao mais fulgurante arrepio da lei.

Ao pretexto de se preservar um pretenso “interesse público”, pisotearam-se todos os princípios que norteiam a conduta de agentes de Estado. Porque ingressos de espetáculos de lazer que detenham atributos diferenciados são comercializados a preços diferenciados desde que se chuta uma bola, se abre uma cortina de teatro, se apresenta um músico. No entanto, a partir do momento em que o CR Flamengo resolve, pela primeira vez em sua história, cobrar em uma decisão um preço compatível com a realidade de mercado (talvez até ainda ABAIXO da mesma, haja vista o praticado por outros clubes em recentes decisões em território nacional), abre-se todo um arco de descontentes que, movidos por interesses diversos, aliam-se a toda uma fauna de frustrados oportunistas que fazem com que uma questão privativa de mercado seja alçada a um tablado para que arlequins do Direito Público entoem obsoletas cantilenas com suas vozes roufenhas em busca do aplauso fácil. No entanto, ao invés das palmas, suscitam apenas indignação e estarrecimento. Nossa democracia mal nasceu, já agoniza.

É o momento do CR Flamengo e de nós, seus torcedores, que buscamos a consolidação do processo de reerguimento pelo qual atravessa a instituição, mantermo-nos solertes e atentos ao que motiva os movimentos de determinadas personagens e de seus paus mandados, estejamos sempre prontos a denunciar e a reverberar quaisquer tentativas de manter o clube imerso em um atraso que sempre se revestiu conveniente aos interesses de muitos dos que hoje gralham em “defesa” de ideias que nem sabem ao certo quais são, vestais da causa própria.

O CR Flamengo é a mais expressiva instituição esportiva do país. É do sacerdote, da puta, do magistrado, do favelado, do menino, do idoso, da empresária, da dona de casa, do pivete, meu e seu. E todos, sem exceção, queremos ver um Flamengo forte, protagonista, vencedor.

Não mais o Flamengo do assecla, do comparsa, do amigo.


(em tempo: cuidado. Ainda podem querer meter a mão na arrecadação da final. Sempre existe uma penhora inesperada, um protesto, uma ação qualquer. Que o jurídico do clube se mantenha atento).