domingo, 10 de novembro de 2013

Alfarrábios do Melo


É hoje o dia.

Hoje é dia de comemorar, de festejar, de sair cantando e pulando com fogo e com alma.

Não tem como dar errado. O time já entra em campo com a meta alcançada, já fez o mais difícil fora de casa. Pode até perder, ora. Não vai perder, não no Maracanã, não no templo que assusta e assombra qualquer adversário, seja qual for sua dimensão, seja qual for sua procedência.

Aboleto-me diante da tevê. Vejo um estádio rapidamente acordando, ganhando vida, crianças e adultos de olhos faiscantes premonizando “quatro a zero, cinco a zero”, placares de sonhos mágicos.

Resmungo meio cético, é decisão, duvido. Meninos, já vi de tudo para entrar na rasa e fácil empolgação da vitória prévia.

Deixo Gonçalves Dias e seu Juca Pirama de lado e volto à tevê, outras distrações desviam a ansiedade, que se instala de vez diante da constatação de que chegou a hora. Os olhos agora vidram na tela, e de lá não sairão nas próximas duas horas.

É 2013, entra em campo o Goiás, mas meus olhos parecem ver o Coritiba, agora estou em 1980. Ou em 1983, interessante, é o Vasco que aparece. Ué, ainda é o Vasco, mas esse jogo é em 2000. Não, espera, é 2004. Calma lá, não é mais o Vasco, agora parece um time do interior, isso mesmo, o Ipatinga.

No nosso lado, Elias e Hernane, Zico e Nunes, Petkovic e Reinaldo, Jean e Felipe, Renato Abreu. Equipes flamengas inteiras giram em minha mente, enquanto uma Nação ávida de glórias vai cantando seus heróis, celebrando a vitória que anunciavam antes dos noventa minutos.

Mas como não pensar em uma vitória inapelável? Embaralho-me de novo, é o Campeonato Brasileiro, o Vasco precisa de dois gols. Não, o Coritiba, precisa de três gols. TRÊS no Maracanã. Como de três precisa o Vasco nesse Estadual. Opa, o Vasco precisa de dois pra ganhar do Flamengo de Abel. E não vamos perder pro Ipatinga no nosso templo lotado, não é?
Não tem como dar errado, não vai dar errado. Venceremos. Já vencemos.

Confio na vitória, mas meus olhos calejados já parecem pressentir que não será tão simples. Nunca é simples, jamais se resume a mero protocolo.

Sai a bola, o estádio se recolhe, espectador, parece enfim perceber que os deuses não gostam de ser desafiados. E, antes de qualquer reação, é gol do Goiás, gol de Sasha. Espera, o gol é de Camanducaia, é do Ipatinga. Nada disso, gol do Vasco, de Elói. De Valdir. De Viola. Opa, é gol do Coritiba. E gol do Coritiba de novo.

Praguejo qualquer coisa. O estádio gela. Mas meus olhos me avisam, me relembram. Se não entro fácil na festa da vitória fácil, também não lacrimejo uma derrota anunciada ao primeiro revés. Ao contrário, animo-me e, como um soldado, penso, “agora vai ter briga. Vamos pra dentro!”

Mas o estádio ainda digere, pensativo. E vejo um Maracanã gelado com os dois gols coritibanos e a contusão de Zico, o time pendurado a um gol de uma tragédia bíblica. Ansioso com o gol de Elói, os vascaínos agora por mais um apenas, como apenas de mais um gol precisam após o improvável tento do veterano Valdir, como ainda lhes faltam dois após Viola abrir o placar. Como não falta nada ao modesto Ipatinga, que precisa da vitória e sai na frente.

Súbito, um temor me percorre a nuca, a vista embaça com a lembrança do Santo André, do gordinho de amarelo. Não somos imunes, não estamos indenes.

Mas não vai ser hoje. O estádio já acorda.

E de repente, algum tipo de fusão parece amalgamar todas as épocas, num espetáculo surreal que me vai maravilhando o olhar. Todas as eras, todas as fases, todos os times do Flamengo dão a mão entre si, transpassando limites espaciais e temporais, e irão buscar a vitória, a virada, a glória, o cume inexoravelmente reservado a qualquer grupo que traje o sagrado manto flamengo.

Sim, lá estão Zico, Tita, Adílio, trocando passes com paciência e determinação, abrindo espaços na defesa goiana. Lá está Beto correndo por todo o campo, ali é Júlio César fechando o gol, aqui é o jovem Léo Moura atacando alucinadamente, acolá está Obina, esperando o momento do abate. E o adversário se entrincheira, encurralado pela força de uma camisa, de uma história, do insuportável peso de enfrentar um estádio inteiro, que explode seus pulmões berrando o amor de todo um país.

Estou tenso, o placar incomoda. Mas a confiança se robustece com a constatação de que novamente se formou a comunhão entre time e torcida, o maravilhoso milagre que faz com que os torcedores joguem e os jogadores torçam. O Goiás agora enfrenta um estádio inteiro. Não resistirá muito tempo.

E é gol!

Gol de Nunes, o Flamengo empata. Não, é Reinaldo quem comemora o gol de Hernane contra o Vasco. Ei, o gol é de Jean. E Jean. E Jean de novo. Zicoooo, camiiiiiiisa número dez, mata o Vasco, que é morto pelo coice de Tuta. Golaaaaço, aaaaaaço, aaaaaaço, o Flamengo virou! Virou, porra! Uma varada de Carlos Alberto, linda essa bomba do Renato Abreu, olha ele fazendo máscara, a máscara que homenageia o filho querido. “Davi, Davi...”

Os olhos agora marejam umedecidos pelo feérico movimento de mãos e corpos que se exaltam, vivem a delícia de ser flamengo, transformam um mero entretenimento esportivo em um fenômeno da natureza. Pulsam, latejam, arfam, urram, transpiram e escorrem o ardente sangue negro e encarnado dos vitoriosos.

A presa ainda se debate, recusando a perecer. Tenta cercar, ameaçadora, o bastião inexpugnável de Nélson Rodrigues, mas eu sei, tu sabes, ele sabe, nós, vós, eles, os flamengos, os goianos, os brasileiros, o mundo inteiro sabe que hoje é dia de Flamengo. Agora qualquer resistência se revestirá de mero protocolo e manifestação de um mínimo de honra.

Ainda vivo o jogo, no fundo sei como isso irá terminar. Mas me lembro de que estou jogando, e me vejo cantando o posicionamento pro Léo Moura, reclamando da cobertura do Wallace, berrando pro Paulo Vítor sair do gol, xingando as firulas dos mais afoitos, gritando contra qualquer marcação que julgue incorreta da arbitragem, no caso todas as que favoreçam o adversário.

E ainda em transe, mal ouço o definitivo trilado do apito, sufocado pelo urro triunfal de uma Nação saciada e feliz. Estou lívido, a camisa empapada de suor, a existência deixada em campo. Torci. Joguei. E venci.

Aos poucos, a fisiologia neurológica, cardíaca, emocional, tudo vai voltando ao seu usual. Agora já é possível raciocinar, pensar o jogo, entender o que aconteceu, voltar a viver uma existência racional. E constato que, apesar de mais de quarenta anos de vida e trinta de futebol, apesar de já ter vivido vitórias históricas, viradas impossíveis, derrotas traumáticas, reviravoltas inimagináveis, espetáculos antológicos, o melhor e o pior do que se pode vivenciar, e por conta disso perceber que muitas vezes as histórias se repetem como farsescas imitações mútuas, ainda sinto a mesma febre infantil, o mesmo tremor, o mesmo clamor, a mesma fome de vitórias de qualquer garoto de oito anos.


O mesmo frio na barriga.