domingo, 1 de setembro de 2013

Alfarrábios do Melo

Saudações flamengas a todos. Hoje, espírito mais leve, deixo uma história despretensiosa. Especialmente para quem acha que Bujica e Nélio foram os únicos heróis anônimos de um Flamengo e Vasco. Boa leitura.

1939.

O carioca, em um cinzento março de pré-guerra, anda saudoso de futebol. O campeonato da cidade terminou em janeiro, há mais de dois meses não há qualquer partida oficial. Daí o alvoroço quando da divulgação da notícia, que informa que Vasco e Flamengo abrirão a temporada com um clássico em São Januário.

A torcida do Vasco, especialmente, anda motivada para enfim encerrar o jejum de dez anos sem títulos sem asterisco (nesse período, conquistou dois campeonatos nos anos de cisão entre amadores e profissionais). O clube abriu a carteira e trouxe do Ferrocarril os argentinos Dacunto, Emeal e Gandulla, que, teoricamente, irão suprir lacunas importantes em seu elenco, em que já figuram bons jogadores como Argemiro, Alfredo, Jaú e Niginho, todos de seleção. A finalidade do amistoso contra o rival maior é justamente apresentar esse novo time para a sua torcida.

Pois o jejum flamengo é ainda maior que o cruzmaltino. Sem conquistar um campeonato desde 1927, o rubro-negro vive a maior escassez de títulos de sua história, atingido em cheio pela briga entre profissionais e amadores. Um vigoroso trabalho de reestruturação, baseado na construção de sua sede, arregimentação de novos sócios, contratação de jogadores de peso (mesmo em baixa) e estruturação do recrutamento de jovens enfim reergue o clube, e o time de futebol já se aproxima bastante do tão almejado título, evoluindo ano a ano. O Flamengo possui craques como Leônidas e Domingos, além de nomes úteis e de qualidade, como Válter, Médio, Volante, Sá, Jaime e Gonzalez. Para a temporada de 39, é aguardada a contratação do atacante Orsi, campeão mundial com a Itália, mas por enquanto a realidade, mais modesta, acena com dois ex-jogadores do São Cristóvão, Osvaldo e Caxambu.

O Flamengo é o favorito teórico, embora vá atuar com alguns desfalques importantes, o principal deles o voluntarioso atacante argentino Gonzalez, ainda convalescendo de uma forte gripe. Em seu lugar vai pro jogo o trombador Caxambu, jogador visto com certa desconfiança pela torcida, que fará sua estreia.

Noite de sexta-feira, nove e meia, um São Januário lotado espera a entrada dos times em campo. O Vasco traja suas tradicionais camisas pretas, o Flamengo vem de branco, uniforme oficial para jogos noturnos. Os primeiros muxoxos emanam das sociais quando se confirma que os três argentinos, na verdade, não irão atuar, pois o Ferrocarril, por conta de questões burocráticas, atrasou o envio das respectivas liberações.

Mesmo assim o alarido é intenso, os vascaínos são maioria (os ingressos foram priorizados para os sócios e torcedores cruzmaltinos), mas o Flamengo se faz presente e numeroso. As duas torcidas atiram-se em cantos, uivos e palavras de ordem enquanto as equipes se preparam para iniciar a peleja. O que poucos imaginam é que os próximos 90 minutos comporão uma das partidas mais sensacionais, emocionantes e elétricas da história do tradicional clássico.

É dada a partida. Impetuoso, o Flamengo logo se atira ao ataque, bola lançada a Caxambu, que domina de canela e perde. A zaga manda pra longe, o rubro-negro retoma, Jaime amacia, passa por dois jogadores e toca a Leônidas, que manda um chute de longe, forte mas sem muita colocação. Mas o goleiro vascaíno Joel erra o bote e a bola vai pro gol. Dois minutos, Flamengo 1-0.

O Vasco dá a saída, bola lançada pra Niginho, Médio se antecipa e aciona Jarbas, que arranca e cruza certeiro, na cabeça de Sá. O ponteiro finaliza desajeitado, mas Joel espalma errado e a bola entra no gol. Três minutos, Flamengo 2-0.

A essa altura, os gritos de incentivo inicial dos vascaínos somem do estádio, e os primeiros muxoxos se fazem perceber, apesar de abafados pela cantoria dos flamengos. Ferido em seus brios, o Vasco tenta estocar a cidadela flamenga, mas o rubro-negro está seguro e controla amplamente o jogo. Seu meio-campo roda a bola, irrita os camisas pretas, a superioridade do Flamengo é flagrante. O goleiro Joel, que falhou nos dois gols, começa a aparecer com algumas defesas, o que não o livra de ser o principal alvo de uma torcida algo ranzinza. E a impaciência logo explodirá em irritação.

O médio vascaíno Oscarino tenta uma jogada individual, mas perde a bola para Jarbas, que faz grande partida. O atacante flamengo vai à linha de fundo e cruza alto. Joel sai do gol e parece absoluto, a bola vem fraca. Mas o infeliz goleiro solta a pelota na cabeça do trombudo Caxambu, que marca seu primeiro gol e o terceiro do Flamengo. 18 minutos, Flamengo 3-0.

Atônita, a torcida vascaína mal tem tempo de esboçar qualquer reação, pois seu time acaba de perder novamente a bola na saída. Uma sucessão de toques e a bola encontra o ponteiro Sá, que se livra de Argemiro com um lindo drible e dá um passe primoroso a Leônidas, deixando o Diamante Negro na cara do gol. Aí, é só tirar de Joel e, aos DEZENOVE minutos, cravar Flamengo 4-0.

Nem o mais fanático rubro-negro consegue perceber a dimensão do que seu time está fazendo em campo. Com menos de vinte minutos de jogo, o Flamengo está vencendo o Vasco em São Januário, diante de sua torcida, por QUATRO A ZERO.

Cravejado de vaias, o pobre Joel é substituído, ainda no primeiro tempo. O Vasco ainda faz mais algumas alterações, aproveitando-se da regra de troca livre em amistosos. As mudanças dão certo, e o cruzmaltino consegue enfim equilibrar a partida, também se valendo de certa indolência flamenga. E aos 30 minutos, numa boa trama de seu ataque, os camisas negras chegam ao seu primeiro gol, num chute torto de Niginho. Agora é Válter que falha, “aceitando” o tiro de longe. Vasco 1-4.

Nos minutos finais da primeira etapa, o Vasco tenta pressionar e o Flamengo contragolpear, mas as equipes pouco produzem. E, sob sonoras vaias vascaínas e forte provocação flamenga, termina a primeira etapa.
Reinicia a partida, e logo se começa a perceber que haverá outro jogo. O Vasco, mordido e ferido, passa a dominar todo o meio e pela primeira vez no jogo encurrala o Flamengo em seu campo. Válter começa a fazer defesas difíceis, e o segundo gol vascaíno parece iminente. E com efeito aparece aos seis minutos, quando Luna manda violento tiro, sem chance para o goleiro flamengo. Vasco 2-4.

O gol acende o estádio, que começa a empurrar os vascaínos. Para piorar, Válter sente lesão e é substituído por Yustrich. Os mais experientes flamengos percebem a mudança do rumo do jogo, e passam a ensebar, enervar, cozinhar o jogo. E é a hora em que o mais improvável dos personagens irá começar a aparecer.
Niginho recebe ótimo lançamento e fuzila, mas Yustrich faz bela defesa. Esperto, o goleiro percebe que o Vasco avançou demais e manda um chutão para o grandalhão Caxambu. O desajeitado atacante escora a bola, apara a investida do zagueiro e consegue abrir para Sá. O ponta avança, espera e cruza rasteiro para o próprio Caxambu, que vem na corrida e emenda. 13 minutos, Flamengo 5-2.

O gol poderia ser uma ducha gelada para os vascaínos, mas acaba desconcentrando o Flamengo. Na saída de bola, o meio flamengo está sem coordenação e assiste às manobras de Villadonica, que estica para o ponteiro Luna cruzar e Niginho emendar, novamente diminuindo. 14 minutos, Vasco 3-5.

O Flamengo já não consegue frear o ímpeto vascaíno. As alterações feitas por seu treinador melhoram consideravelmente a equipe, especialmente no meio. Chovem bolas no gol de Yustrich, todas rechaçadas pela boa atuação de Domingos. Mas a pressão é muito intensa, a essa altura os camisas negras estão praticamente morando na área flamenga. O Vasco tenta rodar o jogo, alçar bolas pros atacantes. Num desses cruzamentos, Médio se atrapalha e agarra Niginho dentro da área. Pênalti, que Alfredo cobra e converte. 20 minutos, Vasco 4-5.

As divindades do futebol sibilam e cochicham, estarrecidas. O Flamengo perdeu a chance de abrir uma goleada histórica no primeiro tempo, e agora está prestes a sofrer uma virada inacreditável e provavelmente humilhante, diante de um estádio em chamas que evoca a reação, como em um mantra, um ritual religioso. A essa altura, nenhum torcedor não-flamengo presente no estádio imagina outro desfecho que não a reviravolta no placar. Morto, exausto fisicamente e à mercê de um adversário que voa em campo, o Flamengo ainda precisa resistir pouco menos de meia hora.

Flávio Costa faz a última alteração, saca o cansado Jocelyn e põe o argentino Volante. O time melhora um pouco, arrefece algo da pressão vascaína. Que, no entanto, continua forte.

Vem o Vasco. Chute violento, Yustrich defende, no rebote a zaga manda a escanteio. Bola cruzada, a cabeçada é forte, mas a bola estala no peito de Domingos, que salva em cima do gol. Nesse lance uns três ou quatro flamengos e vascaínos morrem umas três vezes nas arquibancadas. Outro ataque do Vasco, outra defesa antológica de Yustrich. Agora Niginho passa por dois e vai marcar, mas Domingos salva no momento fatal. Outro tiro de longe beija a trave e sai.

E o jogo vai seguindo, o tempo escorrendo ou estacando, a depender de qual lado está a ansiedade. O Flamengo parece não resistir, mas segue mantendo a agora tênue vantagem. O time mal toca três passes. Recorre à bola longa, ou à bicuda mesmo. Num desses lances, novamente o grandão Caxambu consegue chegar na bola. Com muita dificuldade, consegue domar a pelota irrequieta e ensaia avançar. O zagueiro Oswaldo vem pra dar o bote, mas no momento exato Caxambu tropeça na bola, se desequilibra e quase cai, atrapalhando o zagueiro. Sabe-se lá como, a bola repica e continua com Caxambu, que agora tem Zarzur à sua frente. O zagueiro vem com tudo, e de repente se mescolam pernas, braços, corpos e bola, numa farândula que termina, sabe-se lá como, com Caxambu, trôpego, sozinho diante do arco vascaíno, apenas o impotente arqueiro à sua frente. Todo torto, Caxambu consegue enfiar a bola no canto, paralisando o estádio e, aos 35 minutos, fazendo Flamengo 6-4 Vasco. O terceiro de Caxambu, o nome do jogo. Não Leônidas, não Sá, não Niginho, não esses craques de seleção. Mas o caneleiro Caxambu, vindo de São Cristóvão sim senhor.

Nada mais acontece. Exangue e rendido, o Vasco perde forças e poder de reação. Exausto, o Flamengo toca a bola e administra. As sociais cruzmaltinas ainda aguardam um pouco, mas começam a ganhar o rumo de casa, antes mesmo do apito final, que confirma a vitória flamenga em um dos clássicos mais imprevisíveis de sua história.

O Flamengo, ao final do ano, conseguirá seu título, abrindo caminho para uma era gloriosa. Nesse e nos anos seguintes, não perderá a oportunidade de surrar o Vasco, o que fará em várias ocasiões. E Caxambu, o herói improvável, será um reserva útil, marcando alguns gols importantes nessa trajetória, antes de ir para o Palmeiras, onde também se destacará.


Mas jamais se esquecerá do dia em que foi notícia.