domingo, 3 de fevereiro de 2013

Alfarrábios do Melo


Saudações flamengas a todos,

É recorrente em discussões futebolísticas a comparação entre ídolos do presente e do passado, ou a montagem da “minha seleção de todos os tempos”. É uma forma de se estabelecer referências, e por meio delas se pontuar uma identidade.

Nesse escopo, como seria um “Flamengo de todos os tempos”? Creio ser impossível escalar uma formação indiscutível, por conta de uma série de fatores (falta de registros de jogos no passado, diferença de épocas, impossibilidade óbvia de se ter acompanhado todos os jogadores, entre outros tantos). Mesmo assim, vou tentar.

E vou tentar usando, como critério, os jogadores que mais aparecem nesse tipo de formação ao longo da história. É possível compilar o “Flamengo de todos os tempos” montado nos anos 70 com o montado semana passada, por exemplo. E daí buscar construir uma lista representativa. Evidentemente, não é uma escalação definitiva, mas eu creio que, dos onze nomes, ao menos tenho a pretensão de que uns cinco ou seis sejam tidos como indiscutíveis, o que já conferirá algum valor à lista.

Dessa forma, semanalmente será exposto aqui um dos nomes dessa escalação. Não em forma de uma biografia tradicional, daquelas “chegou ao Flamengo em tal ano, ficou tantos anos, ganhou tantos títulos”, mas em um texto que ilustrará uma passagem em que o personagem terá sido o protagonista. E convido todos a tentar ir adivinhando os próximos nomes a figurarem nas semanas seguintes. Essa semana, começo com o goleiro. SINFORIANO GARCIA. Boa leitura.

1 – SINFORIANO GARCIA

1949. O carioca acorda eriçado, os pelos arrepiam-lhe a nuca, o abdômen se contrai, hirto e teso diante da perspectiva da glória que se avizinha para logo mais.

É dia de gritar “Brasil Campeão”.

O Campeonato Sul-Americano chega ao seu final. A Seleção Brasileira, após 30 anos de jejum, irá conquistar o título continental após a decisão contra o Paraguai. Basta um simples empate contra os paraguaios, que possuem uma seleção nitidamente inferior. E, como se não fosse o suficiente, a partida será disputada no Brasil, em São Januário, na nossa casa, na nossa cidade.

Não tem como dar errado. Não vai dar errado. Já era. Já ganhou.

A maior dúvida entre os torcedores não é saber SE o Brasil será campeão, mas COMO e DE QUANTO. A campanha brasileira, até então, é irrepreensível, uma surra atrás de outra, uma goleada que se torna histórica apenas até o dia da amassada seguinte. É 5-0 na Colômbia, 5-1 no Uruguai (que mandou um time de juniores), 7-1 no Peru, 9-1 no Equador, 10-1 na Bolívia. Os paraguaios apresentam números muito mais modestos, tendo derrotado os mesmos adversários por placares bem mais modestos e apertados, inclusive com uma derrota para os jovens uruguaios. Na rodada final, o Brasil precisa somente de um empate. Ao Paraguai, resta o milagre da vitória para forçar um jogo extra, no mesmo local.

O time brasileiro conjuga alguns dos maiores craques de sua história. Zizinho, Jair, Ademir, Tesourinha, todos dirigidos por Flávio Costa, que pretende fazer desta a base da equipe que irá representar os brasileiros no Mundial do ano seguinte, também no Brasil.

Faixas de campeão já são vendidas antes do jogo, jornais já saúdam os campeões, a festa da vitória já está programada e marcada. Os jogadores  brasileiros posam para fotografias, são saudados como heróis nacionais, tal como os pracinhas que defenderam a honra da pátria anos antes, no front europeu.

Enquanto isso, o Paraguai treina.

Chega a hora do jogo. São Januário vive um princípio de tumulto, é nítido, cristalino que já não consegue suportar os eventos de maior porte. Por pouco uma confusão de dimensões colossais não acontece, graças à intervenção das forças policiais, que energicamente evitam o pior. Mas o estádio está superlotado. Todos querem ver de perto o Brasil campeão.

O Brasil inicia a partida indolente, precioso, exibindo-se com toquinhos e driblinhos que arrancam aplausos e palmas do público. Recuado e acuado, o Paraguai pouco mostra além de bicuda e porrada. Aos poucos, a seleção vai se soltando e chegando perto do gol, chutando bolas com frequência cada vez mais intensa à meta adversária.

Aí algo começa a sair do roteiro.

O goleiro paraguaio, um sujeito alto, espigadão, braços enormes e muito forte, parece se recusar a exercer seu papel no massacre anunciado. Começa a defender rigorosamente tudo. Quem é esse cara?, perguntam, é Garcia, dizem que é bom. Pois o tal do Garcia atua como se sua vida dependesse daquela decisão, e simplesmente nega ao Brasil o gol tantas vezes anunciado e ensaiado. O jogo vai seguindo em um teimoso 0-0.

O que era festa começa a ficar tenso.

Já se passam 30’ do primeiro tempo, quando finalmente a plateia vai explodir. Bola lançada a Tesourinha, que entra cara a cara com Garcia. O arqueiro projeta-se nos pés do atacante gaúcho, que é mais rápido e desvia para o gol. Brasil 1-0, é o show, o espetáculo, o grito, e volta a exibição, a firula e o toquinho. E termina o primeiro tempo.

Na segunda etapa, o treinador paraguaio, um certo Fleitas Solich, irá mudar o panorama da partida. Fleitas manda os paraguaios atacarem, o que surpreende a Seleção Brasileira e expõe as grosseiras falhas do seu sistema defensivo. Comandado pelo atacante Benítez, que deita e rola em campo, o Paraguai começa a fustigar o gol do Brasil com uma intensidade imprevista até pelos mais céticos. Um tiro de longe, na gaveta, Barbosa apenas assiste. É o empate. Silêncio em São Januário.

Mas a igualdade ainda dá o título ao Brasil. Flávio Costa recua o time, que passa a prender e a tocar a bola. Mas Benítez está impossível, e os paraguaios são uma ameaça real. Mas o tempo vai passando, e pouco resta. Alguns lenços, tímidos, começam a ser agitados, um tênue murmúrio de “campeão, campeão” parece que vai começar a tomar conta do estádio. Restam apenas 6 minutos. Benítez sai riscando a defesa brasileira, passa pelo meio de Augusto e Bigode, e toca macio, na saída de Barbosa. É inacreditável, o Paraguai vira o jogo e está na frente. E o jogo já está no fim.

Desesperado, o Brasil liga a artilharia, agora todos são atacantes, o estádio todo acossa o gol paraguaio. Tesourinha chuta, Garcia pega. Zizinho manda a bomba, Garcia espalma. Jair arrisca, Garcia agarra, Garcia defende, Garcia cata, Garcia, Garcia, Garcia. A atuação do goleiro paraguaio beira a perfeição de forma tão sublime que chega a irritar o público. O monstro paraguaio é um leviatã, uma força sobrenatural e intransponível. Nas mãos de Garcia, parece estar materializada a fúria de um castigo divino. E termina a partida. O Brasil, para espanto de um estádio silencioso, perde a partida.

Ao final do jogo, um discreto senhor consegue se aproximar de Garcia, e timidamente aborda o gigante paraguaio. Apresenta-lhe um cartão, “precisamos conversar, é sobre uma proposta de trabalho”. Marcam de se encontrar no dia seguinte. Negociam, e entram em acordo. O futuro profissional de Garcia já está definido, após o sul-americano.

Garcia, agora, já é goleiro do Flamengo.

“Ao contrário de 1950, o Brasil terá a chance de reverter o fiasco da derrota para os paraguaios. No jogo-extra, vencerá por 7-0 e conquistará o título. Garcia será apresentado ao Flamengo semanas depois, em um desfile de carro aberto. Estreará numa partida histórica, vitória sobre os ingleses do Arsenal por 3-1. Garcia, nos anos seguintes, será titular e nome fundamental na conquista do tricampeonato de 53-54-55. Atuará no Flamengo até 1958.”


“Como curiosidade, Benítez e Fleitas Solich também serão, mais tarde, contratados pelo Flamengo e farão história no clube.”